Pontos de reflexão para pais e educadores
Houve um tempo, não tão distante desta virada de século, há poucas décadas, uma época conhecida, na posteridade, por "anos dourados", quando ser criança era somente... ser criança... Em muitos rincões deste Brasil de Deus, ainda pouco se cogitava a existência de televisores; apenas ouvia-se falar em um tipo de rádio que "mostrava os artistas lá dentro, cantando e falando”.
Nesse universo ingênuo, na pequenina cidade de Planalto Verde, perdida no poético interiorzão paulista, o programa de fim-de-tarde e começo-de-noite era brincar de pique na pracinha central, um dos poucos momentos em que os jovens permitiam-se misturar à meninada.
Naqueles tempos dos anos dourados, especialmente em comunidades pequenas como a cidadezinha de Planalto Verde, os temas ligados a sexo significavam um tabu quase inexpugnável para as crianças. Por vergonha, timidez, costume, ou mesmo por ignorância, raramente as mães orientavam as meninas sobre o assunto. Os parcos conhecimentos que estas obtinham eram adquiridos entre crendices, superstições e um sem-número de explicações estapafúrdias passadas por colegas, na rua ou na escola.
A questão da primeira menstruação constituiu-se em um caso à parte nas vidas das três garotas – Cininha, Tatiana e a pequena Isa – que sabiam, por ouvir dizer, “assim mais-ou-menos”, que as moças sangravam. Imaginavam, porém, que, ao tornar-se moças, sangrariam sem parar, pelo resto da vida. Por falta de orientação correta sobre o assunto, sequer lhes passava pela cabeça que as moças sangram apenas alguns dias, em ciclos mensais, nada disso... Imaginando que as moças sangravam sem parar, as três garotas, sempre que possível, procuravam observar suas irmãs maiores, quando subiam em árvores, por exemplo. Tentavam visualizar as calcinhas delas, para conferir se estavam manchadas de sangue. Coisas da realidade do interior... naqueles idos da década de 50... embora em pleno século vinte!
Aliás, o conceito de “moça” também formava um redemoinho na cabeça das meninas. Às vezes, ouviam dizer:
– Fulana já é “mocinha”.
Ou então:
– Fulana não é mais moça.
O que significaria “ser mocinha”? E o que significaria “não ser mais moça”? A falta de diálogo, de educação sexual, provocava um emaranhado de conceitos fantasiosos e enviesados em suas mentes.
Outra preocupação das garotas, que se remoíam em curiosidade, era saber como os bebês nasciam, de que modo saíam da barriga da mãe.
Finalmente, enchendo-se de coragem, a pequena Isa perguntou a Dona Bila:
- Por onde saem os bebês, mamãe?
Tomada de surpresa, Dona Bila titubeou um instante, depois respondeu, encabulada:
- Eles saem... por onde entram!
A pequena Isa não teve tempo de continuar o inquérito. Rapidamente, a mãe dirigiu-se à cozinha, simulando necessidade de cuidar dos afazeres, mas estava, em verdade, fugindo à cena, preocupada com o rumo que poderia tomar a ousadia daquelas perguntas.
A pequena Isa, a partir de então, passou a repisar um novo questionamento:
- Por onde entram os bebês?
Aos poucos, entre uma pseudo-explicação aqui e outra ali, Isa acabou por entender que os bebês eram feitos pelo pai e pela mãe, em conjunto, mais ou menos como os animais. Ao se lembrar de que os cãezinhos permanecem algum tempo atrelados no fim do ato sexual, ela se arrepiava, imaginando uma cena semelhante entre adultos.
Isa e as colegas, especialmente Cininha e Tatiana, viviam conjeturando hipóteses. Em sua imaginação, os bebês eram gerados aos pedacinhos, ou seja, a criança crescia na barriga da mãe à medida que iam sendo montados os braços, as pernas, a cabeça, um pouco de cada vez... A cada relação do pai com a mãe, um novo pedaço ia sendo feito...
Certa vez, faleceu o marido de uma jovem senhora vizinha, que estava grávida.
- E agora? – preocupavam-se as garotas. – Como é que a mãe, viúva, sozinha, vai terminar de fazer o bebê?
A partir de então, sem coragem para pedir maiores explicações aos adultos, as três garotas passaram a acompanhar o processo de gravidez da jovem mãe, com uma ávida curiosidade, certas de que a criança nasceria incompleta. O que faltaria? Um braço? Uma perna? Os cabelos? As garotas conjeturavam e aguardavam o nascimento, preocupadas.
O bebê nasceu perfeito, lindo. Não faltava nada! As meninas permaneceram por um bom tempo sem entender o que acontecera. Acrescentaram mais indagações do que certezas à sua ânsia pelo saber.
Um dia, uma delas – a Cininha – chegou apavorada. Ela estava sangrando! Sua idade, então, era onze anos. E como doía, doía tanto...
As outras, solidárias, acercaram-se da amiga. Contar para a mãe? Nem pensar, não teriam coragem, morreriam de vergonha. Que fazer, então?
– Rezar! Vamos rezar – sugeriu a pequena Isa. – Vamos rezar e pedir que o sangue pare de sair!
As meninas puseram-se a rezar. Nos dias que se seguiram, continuaram rezando, à noite, de dia, sempre que podiam. Finalmente, após alguns dias... que maravilha! Parou! Deu certo! Que bom! Foi bom rezar!
Felizes da vida, as garotas sentiam que o problema sempre se resolveria facilmente, quando chegasse a vez das outras.
– Vamos rezar, que o sangue pára de descer!
Após algumas semanas, Cininha voltou chorando. Estava sangrando de novo!
– Vamos rezar – concluíram as três.
Rezaram, rezaram e, passados três a quatro dias, o sangue parou. Deu certo, de novo! Que alívio!
Alguns dias depois, a mãe de Cininha recebeu a visita de Dona Zizi, uma senhora de mente mais aberta, já de algum modo antenada com os novos tempos. Dona Zizi também tinha uma filha, outra garota da escola, a Nina , alguns anos mais velha do que as três amigas, e perguntou, interessada:
– A Cininha já é mocinha?
Tomada de surpresa, a mãe de Cininha não soube o que dizer. Cininha, por sua vez, não titubeou, lembrando-se de que não sangrava mais:
– Eu não sou mais! Eu era!
As duas senhoras se espantaram:
– Como? Você era mocinha e não é mais? O que está querendo dizer? – indagou a mãe, preocupada.
Cininha fez um breve relato da situação. Contou que sangrara duas vezes e que, por causa de tanto rezar, não sangrava mais.
As duas senhoras riram diante do relato de Cininha. Dona Zizi, então, explicou:
– Estou perguntando se você já é mocinha, porque quero saber se a minha filha Nina já é também, se já contou para alguma coleguinha, porque, comigo, ela não quer tocar no assunto, acho que tem vergonha. Sempre ensinei tudo a ela, direitinho, mas, mesmo assim, a Nina tem vergonha de me contar.. Pensei que você soubesse se ela já ficou mocinha, ou não. Vivo perguntando, mas a Nina não confirma, permanece calada.
– Não sei, Dona Zizi, a Nina também nunca me falou nada... – respondeu Cininha.
Na verdade, Nina era uma garota mais velha e não conversava com as três – Isa, Cininha e Tatiana –, com tanta intimidade. Se fossem mais íntimas, teria sido ótimo, pois a Nina possuía um bom conhecimento a respeito do assunto, naturalmente orientada pela mãe, Dona Zizi, que, embora com pouca escolaridade, revelava-se um caso raro de visão educativa na realidade interiorana de Planalto Verde.
Dona Zizi, então, apresentou um mundo novo de conhecimentos para Cininha e, em conseqüência, para Tatiana e Isa. Calmamente, explicou-lhe, à sua moda, o que era menstruação, ciclo menstrual, cólicas, e, mesmo sem usar o conceito de “ovulação”, que provavelmente ignorasse, alertou sobre os riscos de uma gravidez indesejada:
– Depois de ficar mocinha, se a menina “fizer besteira” com algum rapaz, fica esperando nenê. Durante nove meses, deixa de ficar “incomodada” e só volta a ter menstruação depois que o bebê nasce. Portanto, isso não deve ser feito sem casar!
Cininha ouvia, embevecida, as explicações de Dona Zizi. Apenas um detalhe deixou-a triste:
– Quer dizer que o sangue e as dores vão voltar todo mês?... - indagou-se, desanimada.
A coleguinha Isa, porém, diante de tantas novidades, colocava a imaginação a mil por hora. Dentro de seu processo de construção do conhecimento, dados novos se inseriam, porém faltava-lhe a necessária orientação a que todo aprendiz faz jus. De algum modo, entretanto, embora sem esparramar tanta luz quanto necessário, mais uma janelinha se abrira no intrigante e pequeno-grande mundo da curiosa Isa que, no decorrer da adolescência, aprendeu a buscar nas leituras, sempre que possível, as explicações para suas dúvidas.
Anos depois, quando estudava em um colégio de freiras, Isa permanecia horas na biblioteca pesquisando os livros de biologia e ciências. As pesquisas a ajudavam bastante, embora, às vezes, algumas publicações aparecessem mutiladas, com páginas arrancadas. Uma forte hipótese a esse respeito, entre as alunas, creditava o fato a uma freira idosa, excessivamente pudica, que extraía as páginas de livros onde havia gravuras dos órgãos genitais, para que as meninas não as vissem... A religiosa lecionava História do Brasil no colégio e, nesse sentido, também, as alunas sabiam que era pouco recomendável entregar trabalhos escolares com figuras de índios nus...
Assim, à medida que crescia em conhecimentos, em discernimento, Isa não mais se conformava em sentir alguma dúvida. Ia à luta. Perguntava, pesquisava.
Um dia, assistiu a um diálogo entre sua mãe e uma vizinha. Ambas falavam a respeito de uma jovem da cidade, a qual havia “se perdido” com o namorado e, agora, era uma mulher de “vida-livre”.
– Dizem que ela é “estérica”, - comentou a vizinha.
Dona Bila arregalou os olhos:
– É mesmo?!
A pequena Isa interferiu, curiosa:
– O que é uma mulher “estérica”?
Dona Bila cortou a conversa:
– Quieta, Isa! Isto não é assunto para você!
Isa retirou-se, continuando a ouvir a conversa através da porta entreaberta.
– Então, ela é “estérica”... – murmurava, admirada, Dona Bila.
– É verdade! As mulheres “estéricas” precisam de vários homens para se satisfazer, – completou a vizinha. – Ela é assim.
– Mas, então, como foi que ela engravidou? Dizem que as “estéricas” precisam ter vários homens, mas não conseguem engravidar! – indagou, perturbada, Dona Bila.
O diálogo entre Dona Bila e a vizinha continuou por algum tempo, presenciado, em surdina, pela pequena Isa. A menina, com a curiosidade aguçada, decidiu-se a pesquisar mais o assunto. Através daquela conversa enviesada, ficara sabendo que as mulheres “estéricas” necessitam de vários homens para se satisfazer e que não conseguem engravidar.
Passou-se muito tempo até que a pequena Isa compreendesse a verdade.
A ignorância e o senso-comum, muitas vezes, caminham lado-a-lado, podendo apresentar esses reflexos equivocados do conhecimento científico. Um dia, Isa compreendeu que ambas – sua mãe e a vizinha –, conversavam a respeito de dois conceitos distintos: histeria e esterilidade. Os conhecimentos de ambas, entretanto, eram produtos do universo cultural em que estavam inseridas. Ambos os conceitos se fundiam, ou melhor, se confundiam, como resultado do saber-popular.
Provavelmente a moça da qual falavam era considerada “histérica”, de um ponto de vista sexual, tal como vulgarmente se convenciona chamar determinadas pessoas que manifestam algum tipo de comportamento diferenciado. A histeria, embora popularmente possa se traduzir por irritação, por nervosismo, insere-se em um campo de conhecimento amplo – na medicina, na psicanálise –, caracterizando-se por neuroses que se apresentam através da transformação de conflitos psicológicos em sintomas orgânicos, não necessariamente sexuais.
Ao mesmo tempo, as duas senhoras conversavam sobre esterilidade feminina, ou seja, a respeito de mulheres estéreis, que, por alguma razão biológica, não conseguem engravidar. Uma mulher pode, portanto, ser histérica, sem ser estéril e vice-versa, mas, no saber-popular revelado por ambas, os conceitos de fundiram, resumidamente, em “estérica”.
Paulatinamente, a pequena Isa foi compreendendo as diferenças entre os vários tipos de conhecimento. Sem desvalorizar o saber-popular, Isa ia percebendo a importância de se possibilitar a universalização do acesso à educação às populações em geral, pois democratizar o conhecimento científico é um dos primeiros passos na busca de melhoria da qualidade de vida, para a humanidade, em todos os seus aspectos.
Enfim... fatos como esses constituíam para as pequenas Isa, Cininha e Tatiana, novas janelinhas para o mundo, lampejos de conhecimento que se descortinavam em saltos qualitativos, no seu processo de crescimento interior, aperfeiçoamento da capacidade de discernir e construção de uma visão crítica da realidade.
Oriza Martins
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