Ensinanças

Ensinanças...


Episódio da Série “Janelinhas para o Mundo”
Oriza Martins


Houve um tempo, não tão distante desta virada de século, há poucas décadas, uma época conhecida, na posteridade, por "anos dourados", quando ser criança era somente... ser criança... Em muitos rincões deste Brasil de Deus, ainda pouco se cogitava a existência de televisores; apenas ouvia-se falar em um tipo de rádio que "mostrava os artistas lá dentro, cantando e falando”.
Nesse universo ingênuo, na pequenina cidade de Planalto Verde, perdida no poético interiorzão paulista, o programa de fim-de-tarde e começo-de-noite era brincar de pique na pracinha central, um dos poucos momentos em que os jovens permitiam-se misturar à meninada.
No mundinho feliz de Planalto Verde, vivia a pequena Isa. Ela cursava o terceiro ano primário, tendo por professor o jovem Murilo, um rapaz na faixa de seus dezoito anos e que, em verdade, não era formado para o ofício do magistério. Estudara até a quarta série ginasial e ministrava aulas como substituto, em virtude de faltarem professores na cidadezinha de Planalto Verde.
Naturalmente, Murilo pouco sabia a respeito de psicologia infantil, metodologia de ensino e outras práticas ligadas ao magistério. Em conseqüência, quase se equiparava aos alunos, em termos de comportamento. Como se diz hoje em dia, gostava mesmo era de “zoar” com a criançada. Tacava giz na cabeça dos alunos, escrevia os pontos na lousa com letra ao contrário – especialmente adorava escrever “MIF” no final -, fazia pirraça, elegia seus preferidos e, claro, havia aquelas crianças com as quais vivia embirrando, principalmente se mostravam algum tipo especial de inteligência ou aptidão. Isa era um delas. Que menina metida a querer saber demais!
Era época da Semana da Pátria.
O professor Murilo vivia ameaçando os alunos com noções de comportamento cívico.
– É proibido assobiar o Hino Nacional! Quem for pego assobiando, irá para a Diretoria!
A simples menção dessa proibição incitava a turma ao ato. Como era bom assobiar o Hino Nacional! Principalmente porque era proibido. Um desafio! No recreio, na saída, assobiava-se baixinho. Os dedos-duros, claro, iam correndo contar:
– Seu Murilo, a Tânia estava assobiando o Hino Nacional!
Tânia era uma das “queridinhas” do professor Murilo.
– É verdade, Tânia?
Tânia vacilou um pouco, mas, depois, confessou:
– Sim, senhor. É verdade.
A turma toda gelou. 'Ai, ai, ai! O que será que ele vai fazer? A Tânia vai para a Diretoria?"
Entretanto, para surpresa de todos, o Professor Murilo disse, num tom enfático, defendendo sua queridinha Tânia:
– Vejam! Ela não negou seu erro! É assim que se faz! Quando a gente comete uma falha, devemos admitir o erro. Aposto como muitos de vocês diriam que é mentira, que não fizeram isso! Mas a Tânia assumiu sua culpa, o que é muito positivo! Parabéns, Tânia, por sua sinceridade!
Uau!!! Todos se olhavam com os olhos arregalados. Que baita elogio!! Então, é assim? Ora, quando a gente fizer algo errado, vamos também admitir a culpa e ganhar um belo elogio!
O desfile da Independência foi lindo. À frente, vinham os escoteiros, com o Tato, irmão da pequena Isa, carregando, orgulhosamente, a Bandeira Nacional. Ela também sentia uma pontinha de orgulho... e era a primeira vez que Isa via uma bandeira nacional de verdade. Que montão de estrelinhas! ! E que vontade de contar para saber quantas eram!... Por que a bandeira tinha estrelinhas? Sabe-se-lá por quê! Perguntar para o Murilo? Eu, não! Ele vai dizer que estou querendo saber demais...
Terminado o desfile, a bandeira foi solenemente colocada no "altar da pátria", bem no centro da pracinha da cidade. Todos ficaram em volta, olhando, inclusive Isa, magnetizada pelas estrelinhas.
À tarde, Isa não resistiu. Galgou os degraus do altar da pátria e ergueu o pano da bandeira, começando a contar as estrelas: uma, duas, três, quatro...
– Ei! Saia daí! É proibido mexer na bandeira!
A voz enfurecida do Tato fez Isa voltar-se.
– Desça já daí! Pare com isso! Você não tem nada que ficar mexendo na bandeira! É proibido! – berrava o Tato.
Que irmão chato! Vivia implicando com a Isa! E se considerava o dono da bandeira só porque era o porta-estandarte dos escoteiros!
Isa, sacudindo a ponta da bandeira, respondeu, pirracenta que era:
– Eu mexo o quanto quiser! – E desceu, correndo, os degraus.
A um canto, o Wilsinho, colega de classe, observava a cena.
No dia seguinte, quando todos acabaram de adentrar a sala de aula, o Wilsinho foi logo dedurando:
– Professor Murilo, a Isa deu um soco na Bandeira Nacional!
A classe toda gelou. E agora?
Isa, surpresa, pensou:
– Um soco? Que absurdo, não foi soco nenhum... Foi só uma sacudida na pontinha... E, ainda assim, só porque o Tato tinha implicado!
Então, Isa lembrou-se do elogio feito pelo professor Murilo à Tânia! Afinal, admitir a própria culpa é uma atitude que merece elogio...
– É verdade, Isa? – perguntou o professor Murilo, sério. – Você deu um soco na bandeira?
Isa calou-se por instantes. Falar a verdade... admitir culpa... elogio... Sua cabeça girava.
– Vamos, responda, é verdade? – vociferava o Murilo.
Quem admite culpa ganha elogio. Isa não titubeou mais.
– Sim, é verdade – respondeu, aguardando o elogio.
Só que ela não era uma das “queridinhas”...
– E você diz isso com essa cara deslavada? – berrou o professor Murilo. – Não se envergonha? Isso é coisa que se faça com um símbolo nacional? Já para a Diretoria!!!
Isa, atônita, que esperava um elogio por “admitir o erro”, não conseguia compreender o que se passava, na hora.
É tão fácil ser criança!
Como deve ser complicado ser adulto...

* * *

A pequena Isa só foi entender o que é incoerência com o passar do tempo, com as ensinanças da vida, sentindo que aquela havia sido uma das primeiras lições... uma janelinha nova que se abria para seu pequeno-grande mundo.. que a fez compreender, um dia, a importância de reconhecer seus erros, admitir a própria culpa, assumir a responsabilidade por seus atos, não para fazer bonito, nem visando elogios, mas como oportunidade de reavaliar suas ações, para um crescimento moral, interior – o aperfeiçoamento de seu próprio caráter.

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